Otávio mora há mais de 10 anos no mesmo apartamento. Conhece do avesso aquele lugar. Dia após dia entra pela mesma porta. Dá exatamente duas voltas na fechadura. Encontra o mesmo quadro quando abre a porta. Coloca a chave na mesma mesa. Dá uma olhada nas contas e senta na mesma cadeira da sacada para fumar um cigarro sem gosto. Sempre do mesmo jeito. Sempre no mesmo horário. A cada início de noite a solidão mexe com sua cabeça. A fumaça o envolve de uma forma tal que tudo a sua volta desaparece. O ritual é o mesmo noite após noite.
Naquela noite a vizinha está sentada na sacada ao lado. A luz está apagada e ela divaga sobre o dia que passou. Esperando o vizinho metódico. Naquele dia nada que lhe cercava dera certo. Mais uma vez. Só lhe restava espiar a rotina de sempre do vizinho sem nome, enquanto espera o seu banho relaxante. Na mesma hora de sempre ele chegou ao seu apartamento. Ouve ele fechando a porta, dá exatamente duas voltas na fechadura da porta. Como aquele cara era previsível. Em no máximo dois minutos estará sentado na varanda e fumara um cigarro. Apenas um. Ficará ali por duas horas. Depois irá sumir e só voltará na noite seguinte. Sempre faz a mesma coisa. Noite após noite. Mas e de dia o que ele faz? O que ele faz para ganhar a vida. Ana pensa na expressão 'ganhar a vida' que frase estranha. Ninguém ganha a vida, sempre perdemos. Todos os dias perdemos um pouco da nossa vida. Esta é a dura verdade. Ana começa a divagar sobre a vida do estranho vizinho. Só sabe que ele sai exatamente às oito e quinze da manhã. Ao chavear a porta dá apenas uma volta na fechadura. Mas para onde ele vai? Ana continua a olhar ele pela sacada. São vizinhos e nunca deram nem bom dia. Muito menos boa noite. Quando sai de manhã às vezes vai pela escada, em algumas manhã sai pela garagem (estranho ele não tem carro), sai caminhando pela garagem. Isso que tem um aviso no elevador que é proibido sair pela garagem sem ser de carro. Ana sempre estranhou aquele aviso. Mas nunca questionou o síndico. Aliás nem sabe quem é o síndico. Os avisos são estranhamente assinados como "Direção". Ela nunca foi a uma reunião de condomínio, até porque está atrasada com os pagamentos.
Quando Otávio sentou na sua cadeira percebeu de canto de olho que a vizinha estava na outra sacada. Não se importou. Apenas queria fumar o seu cigarro. Como fazia dia após dia. Hoje subiu do térreo ao décimo andar pelas escadas. Lembrou que deveria falar com o síndico, pois as luzes da escada não estavam funcionando. Uma escuridão. Lembrou que não sabia quem era o síndico. Apenas sabia que quem assinava os avisos do prédio era a "Direção". Que coisa impessoal. Será que era síndico ou síndica. A vizinha do lado poderia ser a síndica. Se bem que ela não tinha cara de síndica. Embora, pudesse ser. Ouvira uma conversas furtivas no elevador insinuando que ela atrasava o pagamento do condomínio. Definitivamente ela não era síndica. Eles geralmente não pagam condomínio, portanto, não poderiam atrasar algo que não têm obrigação. De canto continuava espiando a sacada do lado, ela continuava lá, no escuro como ele. Por que não estava fumando? Tinha uma fumaça lá, mas era incenso. Achava que a vizinha do lado era meio mística. Em cima da sua porta tinha uma cabala. Ouvia nos sábados de manhã sons que pareciam mantras e tinha o tal do incenso. Decidiu procurar na internet algo sobre a vizinha, quem sabe nas redes sociais. Otávio se deu conta que não tinha conta em nenhuma rede social e não sabia nem o primeiro nome da vizinha. Aliás, não sabia o nome de ninguém do prédio. Deu um breve e quase imperceptível sorriso. A fumaça à sua volta o levara a divagações sem muito sentido.
Ana continuava sentada olhando a sacada do vizinho. Percebeu um pequeno sorriso. Um disfarçado sorriso. Será que o vizinho estranho tinha percebido ela? Será que aquele furtivo sorriso era uma espécie de mensagem oculta? Ou apenas foi um sorriso por ter lembrado de alguma piada que lhe contaram no seu trabalho. Mas qual seria o trabalho dele? Decidiu que no outro dia iria segui-lo, iria descobrir em que aquele cara tão introspectivo trabalhava. Foi dormir. Mas antes iria tomar o seu merecido banho.
Otávio ao sair da sacada ficou sentado no sofá da sala. Gostava de escutar os sons do prédio. Os vizinhos cozinhando, brigando, a tv no último volume. Gritos em dias de jogo. A vizinha do lado parecia ser solitária como ele. Nunca ouvira conversas, ou melhor, muito raramente ouvia conversas vindo do apartamento do lado. Outros sons eram comuns ouvir. Sabia que ela demorava muito no banho. A água do chuveiro ficava muito tempo acionada. Lembra que precisa falar com o síndico sobre o excesso de água que todos pagam. Tem certeza que uma das responsáveis é a vizinha do lado. Já cronometrou e uma noite deu mais de uma hora e meia. Mas reclamar com quem? Com a "Direção"? Decidiu que irá se informar quem é o síndico. Mas no mesmo momento desistiu, passados dez anos iria ficar estranho ele procurar o síndico para reclamar do consumo de água. Muito estranho. Os sons ao redor continuavam a mexer com o seu imaginário. O que estariam cozinhando? Como seria o corpo da vizinha que toma banho demorado? Pelo menos sabia que o televisor em algum apartamento estava ligado na novela. O país não falava em outra coisa. A tal novela. Será que todos não percebem que novela é mais uma forma de manter todos conformados. Otávio mais uma vez se enche deste papo de controle social da televisão, parece até coisa de universitário recém saído da faculdade e que acha que tudo gira em torno de controle de nossas ações ou nossas omissões. Mas será que este não é o resumo de tudo que nos cerca. Otávio enche o saco e vai dormir. Dormir sempre no mesmo horário para amanhã fazer o mesmo de sempre. A vizinha continua tomando banho.
Ana entra no banheiro. Abre o chuveiro e a água escorre sem destino. Fecha o boxe. Tudo tão automático. Faz parte do seu dia, talvez como o cigarro do vizinho sem nome. Senta no vaso. Olha a seringa laranja, o isqueiro, a água e o derivado daquela planta milagrosa chamada Papaver Somniferum. Tudo no lugar à espera da alquimia mágica. Nestes momentos sempre agradece Charles Romley Alder Wright. Estende o braço, coloca cuidadosamente o torniquete, não o aperta muito. O braço já está aquecido e pronto para a viagem. O coração dispara. Parece que pressente tudo que irá acontecer. Com todo cuidado introduz a fina agulha no braço, dá uma leve puxada no êmbolo, o sangue entra vagarosamente e é o momento de injetar tudo em sua corrente sanguínea. Está começando a viagem, lembra que tem que fechar o chuveiro, tem que fechar o chuveiro, quer fechar o chuveiro... a viagem começa e o chuveiro mais uma vez fica aberto. Por que deixa a água correndo quando vai se picar? Esta é a última lembrança real de tudo que viveu naquela noite. Ana acorda na sala no outro dia, o vizinho do lado acaba de sair, deu uma volta na fechadura. Ana nem olhou no relógio. Era exatamente oito e quinze da manhã. Mais uma vez não fez o que tinha planejado. Não sabe em que trabalha o vizinho. Não sabe nada, apenas que tem que sair para comprar uma nova dose.
Vcr - xx - The xx
Crystalised - xx - The xx
Islands - xx - The xx
Heart Skipped A Beat - xx - The xx
Fantasy - xx - The xx
Shelter - xx - The xx
Basic Space - xx - The xx
Infinity - xx - The xx
Night Time - xx - The xx
Stars - xx - The xx
Naquela noite a vizinha está sentada na sacada ao lado. A luz está apagada e ela divaga sobre o dia que passou. Esperando o vizinho metódico. Naquele dia nada que lhe cercava dera certo. Mais uma vez. Só lhe restava espiar a rotina de sempre do vizinho sem nome, enquanto espera o seu banho relaxante. Na mesma hora de sempre ele chegou ao seu apartamento. Ouve ele fechando a porta, dá exatamente duas voltas na fechadura da porta. Como aquele cara era previsível. Em no máximo dois minutos estará sentado na varanda e fumara um cigarro. Apenas um. Ficará ali por duas horas. Depois irá sumir e só voltará na noite seguinte. Sempre faz a mesma coisa. Noite após noite. Mas e de dia o que ele faz? O que ele faz para ganhar a vida. Ana pensa na expressão 'ganhar a vida' que frase estranha. Ninguém ganha a vida, sempre perdemos. Todos os dias perdemos um pouco da nossa vida. Esta é a dura verdade. Ana começa a divagar sobre a vida do estranho vizinho. Só sabe que ele sai exatamente às oito e quinze da manhã. Ao chavear a porta dá apenas uma volta na fechadura. Mas para onde ele vai? Ana continua a olhar ele pela sacada. São vizinhos e nunca deram nem bom dia. Muito menos boa noite. Quando sai de manhã às vezes vai pela escada, em algumas manhã sai pela garagem (estranho ele não tem carro), sai caminhando pela garagem. Isso que tem um aviso no elevador que é proibido sair pela garagem sem ser de carro. Ana sempre estranhou aquele aviso. Mas nunca questionou o síndico. Aliás nem sabe quem é o síndico. Os avisos são estranhamente assinados como "Direção". Ela nunca foi a uma reunião de condomínio, até porque está atrasada com os pagamentos.
Quando Otávio sentou na sua cadeira percebeu de canto de olho que a vizinha estava na outra sacada. Não se importou. Apenas queria fumar o seu cigarro. Como fazia dia após dia. Hoje subiu do térreo ao décimo andar pelas escadas. Lembrou que deveria falar com o síndico, pois as luzes da escada não estavam funcionando. Uma escuridão. Lembrou que não sabia quem era o síndico. Apenas sabia que quem assinava os avisos do prédio era a "Direção". Que coisa impessoal. Será que era síndico ou síndica. A vizinha do lado poderia ser a síndica. Se bem que ela não tinha cara de síndica. Embora, pudesse ser. Ouvira uma conversas furtivas no elevador insinuando que ela atrasava o pagamento do condomínio. Definitivamente ela não era síndica. Eles geralmente não pagam condomínio, portanto, não poderiam atrasar algo que não têm obrigação. De canto continuava espiando a sacada do lado, ela continuava lá, no escuro como ele. Por que não estava fumando? Tinha uma fumaça lá, mas era incenso. Achava que a vizinha do lado era meio mística. Em cima da sua porta tinha uma cabala. Ouvia nos sábados de manhã sons que pareciam mantras e tinha o tal do incenso. Decidiu procurar na internet algo sobre a vizinha, quem sabe nas redes sociais. Otávio se deu conta que não tinha conta em nenhuma rede social e não sabia nem o primeiro nome da vizinha. Aliás, não sabia o nome de ninguém do prédio. Deu um breve e quase imperceptível sorriso. A fumaça à sua volta o levara a divagações sem muito sentido.
Ana continuava sentada olhando a sacada do vizinho. Percebeu um pequeno sorriso. Um disfarçado sorriso. Será que o vizinho estranho tinha percebido ela? Será que aquele furtivo sorriso era uma espécie de mensagem oculta? Ou apenas foi um sorriso por ter lembrado de alguma piada que lhe contaram no seu trabalho. Mas qual seria o trabalho dele? Decidiu que no outro dia iria segui-lo, iria descobrir em que aquele cara tão introspectivo trabalhava. Foi dormir. Mas antes iria tomar o seu merecido banho.
Otávio ao sair da sacada ficou sentado no sofá da sala. Gostava de escutar os sons do prédio. Os vizinhos cozinhando, brigando, a tv no último volume. Gritos em dias de jogo. A vizinha do lado parecia ser solitária como ele. Nunca ouvira conversas, ou melhor, muito raramente ouvia conversas vindo do apartamento do lado. Outros sons eram comuns ouvir. Sabia que ela demorava muito no banho. A água do chuveiro ficava muito tempo acionada. Lembra que precisa falar com o síndico sobre o excesso de água que todos pagam. Tem certeza que uma das responsáveis é a vizinha do lado. Já cronometrou e uma noite deu mais de uma hora e meia. Mas reclamar com quem? Com a "Direção"? Decidiu que irá se informar quem é o síndico. Mas no mesmo momento desistiu, passados dez anos iria ficar estranho ele procurar o síndico para reclamar do consumo de água. Muito estranho. Os sons ao redor continuavam a mexer com o seu imaginário. O que estariam cozinhando? Como seria o corpo da vizinha que toma banho demorado? Pelo menos sabia que o televisor em algum apartamento estava ligado na novela. O país não falava em outra coisa. A tal novela. Será que todos não percebem que novela é mais uma forma de manter todos conformados. Otávio mais uma vez se enche deste papo de controle social da televisão, parece até coisa de universitário recém saído da faculdade e que acha que tudo gira em torno de controle de nossas ações ou nossas omissões. Mas será que este não é o resumo de tudo que nos cerca. Otávio enche o saco e vai dormir. Dormir sempre no mesmo horário para amanhã fazer o mesmo de sempre. A vizinha continua tomando banho.
Ana entra no banheiro. Abre o chuveiro e a água escorre sem destino. Fecha o boxe. Tudo tão automático. Faz parte do seu dia, talvez como o cigarro do vizinho sem nome. Senta no vaso. Olha a seringa laranja, o isqueiro, a água e o derivado daquela planta milagrosa chamada Papaver Somniferum. Tudo no lugar à espera da alquimia mágica. Nestes momentos sempre agradece Charles Romley Alder Wright. Estende o braço, coloca cuidadosamente o torniquete, não o aperta muito. O braço já está aquecido e pronto para a viagem. O coração dispara. Parece que pressente tudo que irá acontecer. Com todo cuidado introduz a fina agulha no braço, dá uma leve puxada no êmbolo, o sangue entra vagarosamente e é o momento de injetar tudo em sua corrente sanguínea. Está começando a viagem, lembra que tem que fechar o chuveiro, tem que fechar o chuveiro, quer fechar o chuveiro... a viagem começa e o chuveiro mais uma vez fica aberto. Por que deixa a água correndo quando vai se picar? Esta é a última lembrança real de tudo que viveu naquela noite. Ana acorda na sala no outro dia, o vizinho do lado acaba de sair, deu uma volta na fechadura. Ana nem olhou no relógio. Era exatamente oito e quinze da manhã. Mais uma vez não fez o que tinha planejado. Não sabe em que trabalha o vizinho. Não sabe nada, apenas que tem que sair para comprar uma nova dose.
Continua em algum dia, talvez.
Trilha Sonora:
Intro - xx - The xxVcr - xx - The xx
Crystalised - xx - The xx
Islands - xx - The xx
Heart Skipped A Beat - xx - The xx
Fantasy - xx - The xx
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Basic Space - xx - The xx
Infinity - xx - The xx
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