Como eu escrevi no post mais recente, estou de férias, mas recebi este conto interessantíssimo da desconhecida leitora que assina somente Camerata. Não desconfio quem seja, mas gostei do conto, por isso o publico. Sempre afirmei que estou aberto a contribuições dos leitores do LedVenture... Obrigado e daqui a pouco irei para o mar, assim como o rio...
João Paulo era um homem respeitável. Digo era, pois faleceu faz pouco tempo. Acima de tudo sempre foi um bom pai de família, responsável, admirado por sua família, amigos e colegas. No velório que acabara de iniciar já falavam em prestar uma homenagem colocando o nome da avenida principal da cidade de João Manoel Itacir de Melo Filho. A família chorava, todos têm alguma lembrança boa do Joma, como era conhecido.
A viúva estava impecável, chorava com dignidade, se é que isso é possível. Toda de preto chorava um choro contido, mas ao mesmo tempo sofrido. Tudo transcorria como qualquer velório. Uma certa algazarra na cozinha da câmara mortuária. Choros diante do esquife, tristezas em alguns rostos. Mas então, para surpresa de todos, entra uma desconhecida e se dirige ao caixão. Não se fala com ninguém e aos pratos diz:
- Como sentirei falta de ti Melinho... Minha vida não será mais a mesma. E continua chorando copiosamente.
Um certo alvoroço se estabelece no velório. À boca pequena todos querem saber quem é aquela desconhecida que demostrou tanto carinho pelo Joma, ainda por cima o chamou de Melinho, até então uma alcunha desconhecida de todos.
A viúva continuou impassível, aparentemente nada havia mudado na expressão da viúva Dona Guiomar.
Mas por dentro remoía algumas perguntas como uma grande tempestade no horizonte.
"Quem é esta jovem que fala assim do meu marido?", "Eu ouvi bem? Ela chamou o Joma de Melinho?" e "Será que ele faria uma coisa dessas?". Não, deve haver um engano. O Joma não era como os outros homens. Mas se bem que todas as quartas e quintas ele tinha a tal reunião do convênio e nunca dizia nada sobre esta tal reunião.
No outro canto do velório os amigos do Joma davam risadas contidas e bem baixinho diziam: "O Joma não era fácil, tinha esta gata como amasiada." ou "O Joma então era uma espécie de come quieto." E outros comentários que não podem ser aqui reproduzidos. Mas era consenso que aquela desconhecida era linda. Isto todos os presentes afirmavam com convicção. Até mesmo a viúva se ouvisse estes comentários concordaria com eles...
O mais engraçado que a entrada da desconhecida ocorrera a mais de cinco horas e ela não disse mais nenhuma palavra, e estava parada junto ao caixão chorando copiosamente, sem a dignidade da viúva, pois seu choro era estridente e ao mesmo tempo turbulento. De tempos em tempos murmurava sons inaudíveis e sem sentido aparente.
O clima começava a ficar estranho. Então a viúva se dirige àquela desconhecida. O velório atinge o seu ápice, todos estavam esperando este encontro. Um silêncio sepulcral se estabelece, até na cozinha todos param para tentar ouvir aquela conversa. Dona Guiomar olhando muito séria para a desconhecida pergunta:
- Por gentileza a senhora conhece o Joma de onde?
Ao que a desconhecida responde:
- Senhorita!
- Desculpe não entendi a resposta.
- Não sou senhora. Sou uma senhorita.
Dona Guiomar pensa, biscate isso é o que ela era, mas só pensou.
- Então, a senhorita conhece o Joma de onde?
- Joma? Não conheço nenhum Joma? Mas sim o Melinho.
O sangue da dona Guiomar ferve. Ela tinha vontade de pular no pescoço daquela senhorita bisca. Mas continua a travar aquela conversa kafkiana.
- Minha filha, a pergunta é clara e não se faça de desentendida. Quero saber da onde tu conhece o morto? Preciso ser mais clara?
Um princípio de alvoroço começa a se formar no velório. É concesso entre todos que este era o melhor velório dos últimos anos na cidade. Emoções para todo o lado e quem sabe mais uma corpo para ser velado. Nunca se sabe, mulheres são complicadas, ainda mais quando se trata de defender seus direitos.
- Eu conheci o Melinho na noite.
- Espera um pouco, não chame o Joma de Melinho, você está denegrindo a imagem de um homem que até nome de rua merece. Não faça isso.
- Mas foi a senhora que perguntou.
- Minha filha diga logo como conheceu o Joma. Diga logo.
- Como eu ia dizendo, nos conhecemos na noite, numa noite do pagodão infernal no clube Luz Negra Solitária.
- Não é possível, o Joma detestava pagode e clubes noturnos, ainda mais o Luz Negra.
- Olha só, se ele detestava era com a senhora, comigo ele se soltava, adorava o Luz Negra. E Pagode era a praia dele...
Dona Guiomar sente todo seu mundo despencar. E no mesmo instante chama um dos filhos.
- Lucas, abre o caixão que quero tirar minha foto de dentro deste caixão. O teu pai não merece que eu vá com ele, mesmo que seja em foto. Ele é um canalha. Lucas surpreso como todos, faz o que a mãe ordena.
Quando o caixão é aberto a desconhecida grita desesperada:
- Não. Não pode ser, como o Melinho está diferente. Como envelheceu nestes três dias sumido. Espera um pouco. Não é o Melinho. Qual é o primeiro nome do Melinho?
- João Manoel...
- Não pode ser o meu morto se chama João Eduardo Mello. Estou chorando por outro morto. Não pode ser. Onde estão velando o meu Melinho?
Um desconhecido grita:
- Moça. O João Eduardo está sendo velado na capela 23, mas já lhe digo que a mulher dele é faca na bota...
A desconhecida sai daquele velório como entrara, aos prantos e pronta para enfrentar a sua verdadeira cina...
O Joma sofre a última injustiça, agora morto tivera a sua imagem arranhada, mas logo é alçado à sua posição de origem, ou seja, de pai de família respeitável, admirado por amigos e colegas. E também pela sua aliviada família,
No fundo do velório uma senhora muito discreta dá uma pequena risada...
PS.: O mundo da escrita é muito louco. As histórias ganham vida. Por que estou escrevendo isso, pela simples razão que este conto tomou vida e exigiu um outro final. Recebi outro e-mail de Camerata mudando o final do conto por ela escrito. Abaixo reproduzo o e-mail desta leitora alucinada que já começo a admirar.
Caro LedVenture:
Ontem te enviei um conto que, para minha surpresa foi publicado no teu blog. Aliás, quero te dizer que sou uma leitora voraz do teu blog. Acho que já posso dizer nosso, afinal, já sou uma das autoras. Nem sempre me identifico com tuas histórias, mas sempre as leio. Acho que sempre sou a tua primeira leitora. Mesmo distante do teu mundo gosto de ler tua forma de escrever. Mas deixando de lado esta rasgação de seda, te peço uma gentileza, altere o final do Conto As duas Viúvas. É simples a alteração.
O final escrito era:
No fundo do velório uma senhora muito discreta dá uma pequena risada. E pensa com seus botões. "Ainda bem que esta biscateira estava enganada, não conseguiria ver a imagem do Manoelinho denegrida. Com a Dona Guiomar me acostumei a dividir o Manoelinho, mas com aquela Biscate eu não iria admitir. Iria fazer um senhor escândalo."
Basta colocar reticências depois de risada.
O final ficará:
No fundo do velório uma senhora muito discreta dá uma pequena risada...
Tu pode não entender, mas ontem quando li no blog o conto, o texto gritava por um outro final, algo mais enigmático, então acho que assim fica melhor.
Da tua leitora distante, Camerata.
O final escrito era:
No fundo do velório uma senhora muito discreta dá uma pequena risada. E pensa com seus botões. "Ainda bem que esta biscateira estava enganada, não conseguiria ver a imagem do Manoelinho denegrida. Com a Dona Guiomar me acostumei a dividir o Manoelinho, mas com aquela Biscate eu não iria admitir. Iria fazer um senhor escândalo."
Basta colocar reticências depois de risada.
O final ficará:
No fundo do velório uma senhora muito discreta dá uma pequena risada...
Tu pode não entender, mas ontem quando li no blog o conto, o texto gritava por um outro final, algo mais enigmático, então acho que assim fica melhor.
Da tua leitora distante, Camerata.
Bom, amigos e amigas o final foi alterado como quis a autora, os dois finais estão aí, se alguém quiser pode comentar sobre qual final é mais legal. Eu, de minha parte, achei perfeita a alteração.
Obrigado Camerata, seja quem você for... Sigo em férias, ainda no paraíso, mas rumo ao fim do mundo.
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