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Os tropeços de um escritor

      Naquela manhã fria, Daniel acordou sem motivação para escrever. Estava tentando escrever um romance há muito tempo. Mas hoje era diferente, sentia que estava vazio por dentro, nenhuma inspiração. Que sentimento estranho este, logo ele que estava escrevendo no mínimo quinze folhas por dia nas últimos semanas. Mesmo assim mantinha a rotina de todos os dias, tomou café lendo os jornais, logo após sentou-se à mesa do seu escritório, ligou seu computador, abriu o arquivo onde estava seu romance, eram 452 páginas escritas. O arquivo eletrônico se chamava lutadiaria.doc, um nome sugestivo para o momento atual de Daniel. O cursor estava piscando a espera do surgimento de alguma ideia, mas nada surgia em sua mente. Pelos seus cálculos faltava muito para terminar o romance. Mas num país como o Brasil, o romance não poderia ter mais do que 500 folhas; os editores diziam que espantava o possível leitor, portanto, estava muito perto do fim, mas sem nenhuma inspiração para escrever qualquer coisa...
     Se Daniel fumasse era o momento de acender um cigarro, mas nem este vício ele não tinha. Ainda.
     O cursor continuava piscando, parecia até uma provocação ou quem sabe uma total indiferença com sua falta de inspiração. Daniel lembrou que seus últimos livros tinham vendido tão pouco, não passaram das primeiras tiragens. Com exceção de um dos livros. Ainda assim se julgava um péssimo escritor. Foram cinco livros escritos até hoje.
     O primeiro era uma coletânea de Poesias, "Antologias de Daniel Luz". Um crítico escreveu "Como um escritor iniciante pode ter antologias. Que pretensão." Vendeu exatos 354 exemplares, também com uma crítica destas não poderia ter deslanchado mesmo. Entre o primeiro e o segundo livro se passaram cinco anos. Foi muito difícil enfrentar aquele fracasso. Mas Daniel ainda se julgava um bom escritor e, acima de tudo, insistente.
     Resolveu partir para outro estilo, enveredou para os livros de autoajuda. Pensou que este era o filão a ser explorado, embora alguns amigos o advertisse que existiam muitos escritores de autoajuda. Mas Daniel Luz era diferente. Foi quando lançou "Quem escondeu meu Salame" e logo foi muito badalado pela mídia, muitas reportagens foram feitas em jornais, televisões e rádios. Foi um verdadeiro fenômeno. Pena que sempre debochavam do livro, sem mencionar o que diziam do escritor. Até insinuavam que o livro tinha um toque de autobiográfico e sugeriam onde estaria escondido o tal salame. Daniel Luz chegou a conclusão de que estava muito a frente do seu tempo.  "Quem escondeu meu salame" vendeu mais do que o primeiro livro, foram 415 exemplares. Mas ainda um fracasso retumbante. Deste segundo insucesso foi mais difícil de se recuperar, pois até hoje no YouTube tem um vídeo esculachando o livro, atualmente com mais de seis milhões de acessos.
     Numa das viagens que fez pelo mundo, Daniel Luz teve a melhor ideia destes anos como escritor, resolveu escrever um guia de viagem. Aí não tinha como errar, escolheria um destino legal e faria o melhor livro da sua vida e depois, quem sabe, escreveria o seu tão sonhado romance. Então aconteceu o inesperado. Mais um fracasso. Este Daniel Luz nunca entendeu o porquê. O livro se chamou "Matando o Oriente Médio", numa inspiração livre dos livros de sucesso Traçando Porto Alegre, Traçando Madri e Traçando Paris. Um Aiatolá qualquer condenou à morte Daniel Luz por vilipendiar o Oriente Médio. Mas os caras nem se deram ao trabalho de ler o Matando, se tivessem lido veriam que o livro era bom. Mas estes Ortodoxos não tinham tempo para ler. Então, da mesma forma que fizeram com Salman Rushdie, colocaram a cabeça de Daniel Luz a prêmio, ofereceram apenas mil dólares. Imaginem, Daniel Luz não vendia quase nada de livros e ainda era condenado à morte e por uma ninharia. Não havia alternativa, teve que se esconder por um tempo, saia somente disfarçado e teve que entrar num programa do governo de proteção à vítima. Passou a receber salário do Governo e nem precisava trabalhar mais... muitos diziam que era uma vida boa, mas não era fácil.
     Alguns anos se passaram. Então resolveu escrever um livro de culinária, claro que usando um codinome, afinal ainda estava condenado à morte. Não tinha como dar errado, sempre gostou de cozinhar. Usou o codinome Dan Mestre Cuca e escreveu "Não deixem queimar a rosca". Na internet foi apelidado de Burning to the Cookie, fez muito sucesso com o grupo GLS, sem falar que mais uma vez bombou no YouTube, tinha um vídeo que estava beirando os 4 milhões de acessos. Mas a venda de livros estava baixando ainda mais, "Não deixem queimar a rosca" vendeu exatos 214 exemplares. Ainda bem que tinha o salário do Governo, o tal programa de proteção às vítimas. Mas desgraça pouca é bobagem. Certo dia recebeu uma comunicação informando que a mesadinha do Governo iria ser suspensa, pois com as revoltas no Oriente Médio o tal Aiatolá que o condenou à morte foi deposto e estava preso. Dois meses depois foi morto em praça pública. Que azarão, do Aiatolá que está num outro plano e do Daniel Luz que perdeu a bolsa proteção à testemunha.
     Num desespero e não vendo mais sentido na sua vida literária resolveu escrever um livro contando as suas peripécias como escritor, escreveu "Vicissitudes de um escritor neófito". Enfim o sucesso de público e crítica chegou. Foram vendidos mais de 600 mil exemplares. Com o sucesso estrondoso foi contratado por uma editora de renome, acompanhou as edições do Vicissitudes até a 35ª edição do livro, depois deixou de lado, foram muitas mais. A editora encomendou um Romance, este mesmo que agora está emperrado na página 452.
    Daniel Luz estava usufruindo o relativo sucesso na literatura, mas ao olhar para o computador e não tendo nenhuma inspiração para continuar escrevendo, desejou ser outa pessoa, quem sabe Jesus Luz para então traçar a Madonna, virar DJ e rodar o mundo sem fazer nada... Neste instante teve a certeza da sua falta de talento, decidiu que não iria escrever mais nenhum livro. Seria o autor de um livro só, ou melhor de cinco, apenas um de sucesso. Um sucesso estritamente comercial, mas sem nenhum conteúdo e que não fazia ninguém pensar. Se o sucesso era isso, Daniel Luz preferia viver sem fama. Continuaria escrevendo, talvez criasse um blog, mas não se preocuparia com o sucesso, iria somente escrever sem qualquer intenção. Já tinha até um nome para o blog, brogdoexescritor.blogspot.com.

Trilha sonora
The Sun In Montreal - Pat Metheny - Trio 99->00
Lady - Cat Stevens - Morning Has Broken
The Gospel According To Tony Day - David Bowie - David Bowie (Deluxe Edition)
Beatles - Two Of Us  - Rock 70´s
I Want Love - Elton John - Greatest Hits 1970-2002 (Disc 2)
I Can't Explain - The Who - Rolling Stone Magazine's 500 Greatest Songs Of All Time
Ammonia avenue - The Alan Parsons Project - Ammonia Avenue
Jack Frost and the Hooded Crow - Jethro Tull - The Jethro Tull Christmas Album
Have a Cigar - Pink Floyd - Wish You Were Here
You - Pat Metheny Group - Speaking Of Now
Beauty and the Beast - David Bowie - Singles Collection, Vol. 2
Lost! - Coldplay - Singles
Rolling Stones - Wild Horses -  Rock 70´s
Lucky Man - Emerson, Lake & Palmer - Rock 70´s
Genesis Ch.1 V.32 - The Alan Parsons Project - I Robot

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